Black
Power: Africanidades e relações de poder
Era o final dos anos de 1970, mais precisamente, 1978 e
1979. Eu morava com minha família no norte do Estado do Paraná, na Usina
Bandeirantes, que era produtora de açúcar e álcool.
Nessa época eu tinha meus dezoito e dezenove anos,
respectivamente. Peguei a onda da época e dei uma tapa no visual. A nova moda fez minha
cabeça: o cabelão “black power”. Na verdade eu nem tinha noção do significado
político do que estava fazendo. Só sei que muitos rapazes negros aderiam, era
uma febre na época. Para pentear aquela cabeleira toda era preciso um
equipamento especial, o pente com suporte de madeira e “dentes” cumpridos de
aço, que poderia ser feito artesanalmente ou comprado em algumas lojas. Mas na
minha cidade não havia loja que vendia o tal produto. Então, o jeito era contar
com a ajuda da rapaziada negra que trabalhava em oficinas e que dispunha de
ferramentas e material para confeccioná-lo.
Um dia fui visitar os presos na cadeia pública de minha
cidade (Bandeirantes). Quando entrei lá, um dos presos olhou para mim e
exclamou: “Nossa! Black Power, Michael Jackson!”. Não sei porque, mas essa
associação me tocou de certa forma. Eu e o Michael tínhamos uma coisa em comum:
o cabelão, o “black power”, o “poder negro”.
O sentido mais profundo daquele movimento fui entender
mais tarde, a partir de 1987. Nessa época comecei a me apropriar de forma
sistemática de informações e conhecimentos sobre a história e a cultura
africana, tanto do continente como da diáspora; a perceber a questão das
africanidades e das relações de poder que a perpassa. A porta de entrada para
isso foi a obra O quilombismo, de Abdias Nascimento. Foi a partir dela que
tomei conhecimento do Pan-africanismo e comecei a reinterpretar a nossa
história, a compreender como se deu o processo de colonização, de espoliação, de dominação, de escravização, de assujeitamento do nosso povo; de descolonização,
de abolição da escravidão e, depois, dos processos de exclusão, do racismo, nas
suas diversas formas. Depois de Abdias Nascimento, li sobre Martin Luther King,
Malcoln X, Steve Biko, Nelson Mandela, Winie Mandela, Leopold Sedar Senghor,
Nkrumah, Aimé Cesaire, Desmont Tutu, o cineasta Spike Lee, Rosa Parks, Angela
Davis, Benedita da Silva, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, dentre outros e outras.
Foi nessa época também que, finalmente, descobri que havia um partido nos
Estados Unidos, que se chamava Partido Pantera Negras (Black Panther Party),
que tinha uma pegada revolucionária, que queria que a comunidade negra
conquistasse o poder, que utilizava-se, inclusive, da luta armada. Paralelo a
isso, tive oportunidade de visitar uma comunidade remanescente de quilombos, o
que ocorreu no ano de 1987. Tratava-se de Palmital dos Pretos, comunidade situada na
cidade de Campo Largo, no Paraná. Essa visita me impactou bastante, fazendo com
que eu fizesse um pacto comigo de mesmo de fazer de tudo para ajudar nosso povo
a empreender um processo de verdadeira abolição, de conquista da igualdade e da
liberdade.
Nesse processo me apropriei de conceitos como
“negritude”, “consciência negra”, “segregação racial”, “ações afirmativas”,
“direitos civis”, “racismo cordial”, dentre outros.
Essas descobertas me deixaram bastante entusiasmado e me
empurraram para a militância, fazendo com que, à minha maneira, eu assumisse, ao
menos um pouco e, de maneira, mais consciente, a atitude de um Black Power,
fazendo com que eu me engajasse na luta antirracista, conversando, dando
palestras, cursos, realizando atividades culturais, escrevendo para jornais,
realizando seminários, encontros e debates; realizando cursos comunitários, exibindo meu cabelo, minhas vestes e adereços afros, participando em organizações culturais e religiosas, como os Agentes de
Pastoral Negros (APNs), organização ligada às comunidades cristãs, Candomblés e Umbandas, e de organizações de reivindicação
política, como os chamados movimentos sociais negros, que lutavam e lutam por
políticas públicas de inclusão com corte racial, por ações afirmativas, por garantia de educação, saúde, segurança, dentre outras. Uma grande bandeira assumida pelos movimentos e por mim foi a luta para desconstruir a história oficial ou seja, construir, para utilizar um
termo foucaultiano, uma contra-história (FOUCAULT, 1999), que consiste em contar
a nossa própria história. Isso fez com que provocássemos um deslocamento
importante: conseguimos desmistificar o “13 de maio”, como data da redenção de
nosso povo e promover o dia “20 de novembro” como “Dia Nacional da Consciência
Negra”.
Hoje, já sem tanto cabelo a exibir, tendo manter aquele
ímpeto, aquela energia que nos embalava, embora tentando descobrir diariamente,
formas outras de fazer a diferença, de repensar processos de resistência, de
nossa constituição enquanto sujeitos, entre as coisas, no meio do caos em que
vivemos.
Muita coisa foi conquistada, mas ainda há muitos caminhos
a serem trilhados, travessias a serem feitas, trajetórias e linhas de fuga a
serem traçadas, desterritorializações e reterritorializações.
O racismo, em suas múltiplas formas, a saber, o preconceito, a discriminação, a segregação, a violência, continua a exigir nosso empenho constante e a manter vivo o espírito dos Black Power, que é o de revolucionar e constituir novas sociedades que, para mim, devem ser libertárias, igualitárias, que considerem as multiplicidades e acolham as diferenças.
O racismo, em suas múltiplas formas, a saber, o preconceito, a discriminação, a segregação, a violência, continua a exigir nosso empenho constante e a manter vivo o espírito dos Black Power, que é o de revolucionar e constituir novas sociedades que, para mim, devem ser libertárias, igualitárias, que considerem as multiplicidades e acolham as diferenças.
Referências:
BIDIMA, Jean-Godfroy. Da travessia:
contar experiências, partilhar o sentido. Disponível em:
https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/jean-godefroy_bidima_-_da_travessia._contar_experi%C3%AAncias_partilhar_o_sentido.pdf
BORGES, Pedro. Steve Biko e a Consciência
Negra. Disponível em:
https://www.almapreta.com/editorias/realidade/steve-biko-e-a-consciencia-negra
CAZARRÉ,
Marieta; BRITO, Débora. Mandela 100 anos: mundo relembra um dos maiores líderes do século 20.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/mandela-100-anos-mundo-relembra-um-dos-maiores-lideres-do-seculo-20/
DAVIS, Angela. A liberdade
é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos.
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
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curso do Collège de France (1975-1976). Trad. De Maria Ermantina Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, M. Do governo
dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009
(ebook).
FRIER, Raphaelle. Martin e
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Janeiro, Pequena Zahar, 2014.
KAISER,
Lisbeth. Rosa Parks: Little people, big dreams. Frances Lincoln
Chilrens,s Book. 2017.
MARTINS, Victor. Inserção
dos negros nos espaços de poder, uma luta nem um pouco fácil. Disponível
em:
http://todosnegrosdomundo.com.br/insercao-do-negro-nos-espacos-de-poder-uma-luta-nem-um-pouco-facil/
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. 2ª
ed. Brasília/Rio: Fundação Cultural Palmares, OR Editora, 2002.
OLIVEIRA, Denilson Araújo
de. Africanidades. Disponível em:
http://revista.catedra.puc-rio.br/index.php/2016/11/03/africanidades/
SANTOS, Valneide dos Santos. Movimento da
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http://negritudesocialista.org.br/movimento-da-negritude-uma-breve-reconstrucao-historica/
VIEIRA, Kaue. Black Power: Instrumento
de poder e cultura. Disponível em:
http://www.afreaka.com.br/notas/black-power-instrumento-de-resistencia-e-cultura/
*José Benedito de Barros é Mestre em Educação pela Unesp de Rio Claro-SP.
Parabéns Zé! Vc é orgulho para sua família e amigos. É muito orgulho para todos!
ResponderExcluirObrigado! Um abraço para você!
ResponderExcluirQue Bacana sua história, sua luta. Que grande guerreiro. Parabéns
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