terça-feira, 9 de outubro de 2018

Comunidade afro-brasileira: identidade ou travessia?


Comunidade afro-brasileira: identidade ou travessia?

José Benedito de Barros

A tomada de consciência resulta de elaboração de possíveis respostas a perguntas fundamentais, com o fim de nos situarmos no mundo. Quem sou, quem somos: identidade individual e coletiva. Para onde iremos, que mundo construiremos: travessia.
Para tratar desse tema utilizarei. de forma antropofágica (Andrade (1928). os textos de Bidima (1992), Barros (2006), Deleuze (1992), Foucault (2009 e 2010), Evaristo (2014) e o filme Black Panther (2014).

Noção de Identidade (aquilo a partir de que): juntando os cacos da memória, afirmando posições

Identidade, significa o mesmo, o igual; também significa o compartilhamento de um modo de existir, compreendendo, a língua, o território, os costumes, a raça, a cor de um povo.
Quando o sujeito afro-brasileiro pergunta sobre sua identidade, sobre quem é, a resposta imediata pode ser um vazio. Para responder a essa indagação pode ele lançar uma olhar sobre si mesmo, sobre a sua realidade e até mergulhar na história, no passado, na memória, para juntar caquinhos, e fazer uma trabalho de construção ou reconstrução e, finalmente dizer: isso sou eu, minha identidade individual e coletiva, na medida em que compartilho com outros os mesmos cacos: fragmentos de línguas africanas (moleque, cachimbo, catinga, xingo, carimbo, quitanda, axé...), de vestes, de religião, de danças... Mas não é só isso: há memória de saberes, de fazeres... de dores, de sofreres, de múltiplas subjetivações (de assujeitamentos).
De toda forma, a identidade faz com que olhemos para o passado, numa busca pelos fundamentos, pelas origens, por uma ancoragem. Os temas referentes à identidade nos remetem a mundos que só existem na memória, a uma África recriada pela imaginação.

Falar de identidade é falar de essência. Como a constatação é de vazio, de ausência, uma vez que fomos objetivados, principalmente a partir de culturas outras, europeizadas, fala-se muito de resgate. Para tanto, nosso olhar faz uma viagem no tempo e no espaço: para o passado africano. Triste viagem, aliás. O que vem à tona:  colonização, escravização, diáspora, ressentimento, dor, desgraça. As coisas positivas, restam ocultadas. Temas como direito, economia, desenvolvimento, a relação com o outro, não são tratados. Seria possível avançar nesses aspectos? Talvez. Talvez, se pensarmos uma perspectiva de travessia.

Noção de travessia (aquilo por que): Criticando o aqui e agora e partindo para mundos possíveis

Atravessar um território – terra, rio, mar, deserto - é recortá-lo, é ir de um lado a outro, por dentro. Isso supõe disposição para se desapegar, para desassossegar, para sair e partir. Já não se busca o passado; já não se apega aos cacos da memória. O desafio é o aqui e o agora, a imanência, o presente. Esse presente é estudado em suas minucias para se levantar todas a possibilidades, todas as potencialidades e multiplicidades ali presentes. Parte-se daí para novos mundos, novos temas. Partindo-se da realidade, problematizando-a, levantando-se temas a ela pertinentes, pode-se traçar rotas, trajetórias, linhas de fuga, construir o novo, fazer microrrevoluções, subjetivar-se ou construir novos modos de existir, por meio de um trabalho de si sobre si mesmo, saindo de si mesmo e partindo rumo ao desconhecido, ao indeterminado, praticando um nomadismo sem fim, fazendo caminho enquanto se caminha. Na travessia coletiva somos todos malungos (companheiros).

A travessia, por implicar constante movimento, faz com que o sujeito individual e coletivo, trabalhe temas impensados na perspectiva da identidade. Não se busca a origem, a base, mas os devires, os vir-a-ser, o novo. A travessia opera por desterritorialização e reterritorialização. 
Eis alguns temas possíveis de serem trabalhados nessa perspectiva: direito, economia, educação, segurança, saúde, história, geografia, saber, poder, química, física, biologia, tecnologia (Filme Black Panther), alteridade, dentre outras. Ou seja, temas levantados a partir da problematização da realidade atual.

Palavras finais

A partir das breves palavras acima, lanço dois questionamentos para provocar conversas.
Que possibilidades as duas abordagens (identidade e travessia) apresentam para os afro-brasileiros, do ponto de vista individual e coletivo?
Qual das duas abordagens melhor responde aos desafios para construir sociedades possíveis na perspectiva da inclusão de todas as pessoas, sem racismos, sem machismos e outros ismos?

Indicações e Referências Bibliográficas

ANDRADE, Oswaldo de. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, ano 1, n. 1, São Paulo, 1928.
BARROS, J.B. A identidade dos gestores escolares negros. Rio Claro, SP, Unesp, 2006. (Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/brc/33004137064P2/2006/barros_jb_me_rcla.pdf
BIDIMA, Jean-Godefroy. Da travessia: contar experiências, partilhar o sentido. Disponível em:
https://filosofia-africana.weebly.com/.../jean-godefroy_bidima_-_da_travessia._contar...
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo; Ed. 34, 1992.
BLACK PANTHER (Pantera Negra). Filme dirigido por Ryan Coogler. EUA, 2018.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas Fundação Biblioteca Nacional, 2014.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009 (ebook).
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.



José Benedito de Barros: Mestre em Educação (Unesp/Rio Claro, SP, Brasil)

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Racismo Religioso. Isso existe?


Racismo Religioso. Isso existe?

José Benedito de Barros

É possível falar de racismo religioso?
Por racismo podemos entender as diversas práticas discursivas ou não discursivas de discriminação, preconceito, segregação e violência dirigidas a pessoas pertencentes a determinados grupos humanos.
Religioso de Matriz
Afro-brasileira

Na origem da palavra racismo está o termo “raça”. Foi a partir do final do século XIX que o termo “raça” foi utilizado por filósofos e cientistas europeus para classificar os seres humanos. Esses “especialistas” tinham em mente classificar a multiplicidade humana para estabelecer uma hierarquia na mesma.

Assim, grosso modo, com alterações aqui e ali, dividiu-se a humanidade em branco, preto, indígena (pele vermelha) e amarelo. Ou seja, o critério principal foi o aspecto biológico. Essa divisão, aliada ao darwinismo social e ao conceito de desenvolvimento, levou os “especialistas” a atribuir valor a cada segmento “racial”. Assim, ao branco atribuiu-se o grau máximo de evolução e ao negro o grau mínimo, mais próximo do animal. Àqueles que tinham cores intermediárias (vermelhos, amarelos), atribui-se um grau de evolução intermediário. Assim, as bases para o racismo biológico estavam postas. O resultado estamos colhendo ainda hoje: quantos genocídios já tivemos na história com base nessa suposta superioridade e/ou inferioridade racial natural, visto que a origem seria na constituição biológica das pessoas. Negros, indígenas, pessoas com deficiência, dentre outros, foram, ao longo da história, sistematicamente assassinados, explorados, humilhados, por serem considerados inferiores. Mas o racismo evoluiu.

Religiosos Cristãos Católicos -
Frades Menores Capuchinhos
O racismo evoluiu. O racismo biológico continua, embora as últimas novidades da ciência tenham apontado que não há raças humanas. Basta abrirmos os jornais para ver os setores que mais sofrem: mulheres negras, homens negros, indígenas, estão entre os principais alvos das violências, das discriminações, dos preconceitos e das segregações, pelo quesito raça, de forma isolado combinado com outros fatores como gênero e transgêneros (LGBTs) . Mas há outros alvos, digamos, culturais. 

Pertencer a alguns segmentos culturais, como, por exemplo, o religioso, que não sejam aqueles aos quais pertencem os que exercem o poder de forma dominante, tem se tornado um perigo. Pertencer aos segmentos religiosos de matriz cultura africana, como a umbanda e o candomblé, por exemplo, tem significado nestes tempos incertos, correr riscos sérios. As notícias são terríveis: invasão de templos, violências, discriminações, discursos de ódio e de desprezo. Nas redes sociais, dado um certo anonimato das pessoas, essas manifestações são mais acentuados. Assim, a hierarquização continua: Muitos acreditam que há religiões superiores e religiões inferiores.
Crianças budistas
No direito brasileiro o racismo religioso, ao lado de outras espécies de racismo, é crime. A Lei Federal 7.716/89, em seu artigo 1º diz:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Religiosa Cristã, Pastora Evangélica Angolana

Penso que, da mesma forma que não há hierarquia racial com base na biologia, também não há do ponto de vista cultural. As culturas se equivalem; as religiões se equivalem. Elas são diferentes, sem que haja subordinação entre elas. Não importa se a pessoa professe uma religião cristã, judaica, muçulmana, umbandista, candomblecista, budista. Ou não professe religião alguma. Que importa se seu deus seja chamado de “pai”, “zambi”, “javé”, “olorum” ou “alá”? Que seu sacerdote ou sacerdotisa,  seja “padre”, “pastor”, “pastora”,“tatetu”, "mametu”, “iyá” ou “babá”, "ministro" ou "ministra". O importante é que o outro ou outra, na sua diferença, seja acolhido (a), não como semelhante a mim, não na medida que ele ou ela sua crença se equivalha à minha, mas na sua diferença.

Afinal, todos somos diferentes! Ou não?

Indicações bibliográficas

BRASIL. Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Braília, 5 de janeiro de 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7716.htm 
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Traduzido por Sebastião Nascimento. São Paulo : n-1 edições, 2018.
Santos, Joel Rufino dos. O que é racismo? São Paulo : Abril Cultural, 1984.

José Benedito de Barros: Mestre em Educação pela Unesp/Rio Claro-SP, Brasil

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Black Power: Africanidades e relações de poder


Black Power: Africanidades e relações de poder

José Benedito de Barros*

Era o final dos anos de 1970, mais precisamente, 1978 e 1979. Eu morava com minha família no norte do Estado do Paraná, na Usina Bandeirantes, que era produtora de açúcar e álcool.
Nessa época eu tinha meus dezoito e dezenove anos, respectivamente. Peguei a onda da época e dei uma tapa no visual. A nova moda fez minha cabeça: o cabelão “black power”. Na verdade eu nem tinha noção do significado político do que estava fazendo. Só sei que muitos rapazes negros aderiam, era uma febre na época. Para pentear aquela cabeleira toda era preciso um equipamento especial, o pente com suporte de madeira e “dentes” cumpridos de aço, que poderia ser feito artesanalmente ou comprado em algumas lojas. Mas na minha cidade não havia loja que vendia o tal produto. Então, o jeito era contar com a ajuda da rapaziada negra que trabalhava em oficinas e que dispunha de ferramentas e material para confeccioná-lo.
Um dia fui visitar os presos na cadeia pública de minha cidade (Bandeirantes). Quando entrei lá, um dos presos olhou para mim e exclamou: “Nossa! Black Power, Michael Jackson!”. Não sei porque, mas essa associação me tocou de certa forma. Eu e o Michael tínhamos uma coisa em comum: o cabelão, o “black power”, o “poder negro”.
O sentido mais profundo daquele movimento fui entender mais tarde, a partir de 1987. Nessa época comecei a me apropriar de forma sistemática de informações e conhecimentos sobre a história e a cultura africana, tanto do continente como da diáspora; a perceber a questão das africanidades e das relações de poder que a perpassa. A porta de entrada para isso foi a obra O quilombismo, de Abdias Nascimento. Foi a partir dela que tomei conhecimento do Pan-africanismo e comecei a reinterpretar a nossa história, a compreender como se deu o processo de colonização, de espoliação, de dominação, de escravização, de assujeitamento do nosso povo; de descolonização, de abolição da escravidão e, depois, dos processos de exclusão, do racismo, nas suas diversas formas. Depois de Abdias Nascimento, li sobre Martin Luther King, Malcoln X, Steve Biko, Nelson Mandela, Winie Mandela, Leopold Sedar Senghor, Nkrumah, Aimé Cesaire, Desmont Tutu, o cineasta Spike Lee, Rosa Parks, Angela Davis, Benedita da Silva, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, dentre outros e outras. Foi nessa época também que, finalmente, descobri que havia um partido nos Estados Unidos, que se chamava Partido Pantera Negras (Black Panther Party), que tinha uma pegada revolucionária, que queria que a comunidade negra conquistasse o poder, que utilizava-se, inclusive, da luta armada. Paralelo a isso, tive oportunidade de visitar uma comunidade remanescente de quilombos, o que ocorreu no ano de 1987. Tratava-se de Palmital dos Pretos, comunidade situada na cidade de Campo Largo, no Paraná. Essa visita me impactou bastante, fazendo com que eu fizesse um pacto comigo de mesmo de fazer de tudo para ajudar nosso povo a empreender um processo de verdadeira abolição, de conquista da igualdade e da liberdade.
Nesse processo me apropriei de conceitos como “negritude”, “consciência negra”, “segregação racial”, “ações afirmativas”, “direitos civis”, “racismo cordial”, dentre outros.
Essas descobertas me deixaram bastante entusiasmado e me empurraram para a militância, fazendo com que, à minha maneira, eu assumisse, ao menos um pouco e, de maneira, mais consciente, a atitude de um Black Power, fazendo com que eu me engajasse na luta antirracista, conversando, dando palestras, cursos, realizando atividades culturais, escrevendo para jornais, realizando seminários, encontros e debates; realizando cursos comunitários, exibindo meu cabelo, minhas vestes e adereços afros, participando em organizações culturais e religiosas, como os Agentes de Pastoral Negros (APNs), organização ligada às comunidades cristãs, Candomblés e Umbandas, e de organizações de reivindicação política, como os chamados movimentos sociais negros, que lutavam e lutam por políticas públicas de inclusão com corte racial, por ações afirmativas, por garantia de educação, saúde, segurança, dentre outras. Uma grande bandeira assumida pelos movimentos e por mim foi a luta para desconstruir a história oficial ou seja, construir, para utilizar um termo foucaultiano, uma contra-história (FOUCAULT, 1999), que consiste em contar a nossa própria história. Isso fez com que provocássemos um deslocamento importante: conseguimos desmistificar o “13 de maio”, como data da redenção de nosso povo e promover o dia “20 de novembro” como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Hoje, já sem tanto cabelo a exibir, tendo manter aquele ímpeto, aquela energia que nos embalava, embora tentando descobrir diariamente, formas outras de fazer a diferença, de repensar processos de resistência, de nossa constituição enquanto sujeitos, entre as coisas, no meio do caos em que vivemos.
Muita coisa foi conquistada, mas ainda há muitos caminhos a serem trilhados, travessias a serem feitas, trajetórias e linhas de fuga a serem traçadas, desterritorializações e reterritorializações. 

O racismo, em suas múltiplas formas, a saber, o preconceito, a discriminação, a segregação, a violência, continua a exigir nosso empenho constante e a manter vivo o espírito dos Black Power, que é o de revolucionar e constituir novas sociedades que, para mim, devem ser libertárias, igualitárias, que considerem as multiplicidades e acolham as diferenças.

Referências:

BIDIMA, Jean-Godfroy. Da travessia: contar experiências, partilhar o sentido. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/jean-godefroy_bidima_-_da_travessia._contar_experi%C3%AAncias_partilhar_o_sentido.pdf
BORGES, Pedro. Steve Biko e a Consciência Negra. Disponível em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/steve-biko-e-a-consciencia-negra
CAZARRÉ, Marieta; BRITO, Débora. Mandela 100 anos: mundo relembra um dos maiores líderes do século 20. Disponível em: https://www.geledes.org.br/mandela-100-anos-mundo-relembra-um-dos-maiores-lideres-do-seculo-20/
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso do Collège de France (1975-1976). Trad. De Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009 (ebook).
FRIER, Raphaelle. Martin e Rosa: Martin Luther King e Rosa Parks unidos pela liberdade. Rio de Janeiro, Pequena Zahar, 2014.
KAISER, Lisbeth. Rosa Parks: Little people, big dreams. Frances Lincoln Chilrens,s Book. 2017.
MARTINS, Victor. Inserção dos negros nos espaços de poder, uma luta nem um pouco fácil. Disponível em: http://todosnegrosdomundo.com.br/insercao-do-negro-nos-espacos-de-poder-uma-luta-nem-um-pouco-facil/
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. 2ª ed. Brasília/Rio: Fundação Cultural Palmares, OR Editora, 2002.
OLIVEIRA, Denilson Araújo de. Africanidades. Disponível em: http://revista.catedra.puc-rio.br/index.php/2016/11/03/africanidades/
SANTOS, Valneide dos Santos. Movimento da Negritude: Uma Breve Reconstrução Histórica. Disponível em: http://negritudesocialista.org.br/movimento-da-negritude-uma-breve-reconstrucao-historica/

VIEIRA, Kaue. Black Power: Instrumento de poder e cultura. Disponível em: http://www.afreaka.com.br/notas/black-power-instrumento-de-resistencia-e-cultura/

*José Benedito de Barros é Mestre em Educação pela Unesp de Rio Claro-SP.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Verdade e educação: a subjetividade dos ativistas antirracistas


Por José Benedito de Barros*

Projeto de pesquisa apresentado junto à Unicamp como pré-requisito para participar do processo de seleção ao Doutorado.

Verdade e educação: a subjetividade dos ativistas antirracistas
RESUMO
O objetivo geral da pesquisa consiste em investigar e explicitar os processos de subjetivação dos ativistas antirracistas brasileiros e a relação desses processos com a verdade e a educação, fazendo irrupção, falando das descontinuidades históricas, das urgências e emergências. O referencial teórico a ser utilizado será o das filosofias que tematizam as diferenças, principalmente as contribuições do pensador francês Michel Foucault. Serão também consideradas as contribuições de pensadores e pensadoras do continente africano como Achille Mbembe e Chimamanda Ngozi Adichie, e brasileiros e brasileiras como Abdias Nascimento e Djamila Ribeiro, além de outros e outras. Para a pesquisa será utilizado o operador metodológico denominado anarqueologia, inspirado em Foucault. Busca-se-á levantar os saberes, as relações de poder e as tecnologias ou técnicas de si, para se compreender como os combatentes contra as práticas racistas, nas suas diversas modalidades, são subjetivados e constituem a própria subjetividade e qual o papel que a educação exerce nesses processos.

Palavras-chave: Subjetividade, Subjetivação, Verdade, Educação, Ativistas antirracistas.

ABSTRACT
The general objective of the research is to investigate and explain the processes of subjetivation of Brasilian anti-racist activists and the relation of these processes to truth and education, making an outburst, speaking of historical discontinuites, urgencies and emergencies. The theoretical reference to be used wil be that of the philosophies which thematize the differences, mainly the contributions of the French thinker Michel Foucault. The contributions of thinkeres from African continent, such as Achille Mbembe and Chimamanda Ngozi, and Brasilian thinkers such as Abdias Nascimento and Djamila Ribeiro, among outhers, wil also be considered. For the research will be used the methological operator called anarcheolology, inspireded by Foucault. It will seek to raise the knowledge, power relations and thecnologies or techiniques of self, to understand how the combatants againt the racist practices, in their vavious modalities, are subjectivated and constitute the subjectivity themself and the role of education in these processes.

Key words: Subjectivity, Subjectivation, Thruth, Education, Antiracist activists

1-INTRODUÇÃO

O presente projeto de pesquisa tem como tema central a subjetividade dos ativistas antirracistas do Brasil e a relação da mesma com a educação.
Meu intento é estudar os ativistas que se dedicaram e se dedicam à resistência às diversas formas de racismo. Trata-se de saber como esses ativistas, constrangidos pelo regime de verdade que se sobrepõe a outros regimes de verdade, constituem a si mesmos, ou seja, sua subjetividade, enquanto lutam por políticas públicas de igualdade, liberdade e respeito às diferenças.
Esse tema já se mostrava presente, ainda que de forma embrionária, em minha pesquisa de mestrado (Barros, 2006, p. 91). Naquela pesquisa

Os objetivos perseguidos foram: inventariar a própria auto-imagem dos pesquisados enquanto negros e enquanto gestores escolares, colhendo dados, a partir de suas falas, a respeito de si mesmos e das instituições ou organizações de que fazem parte, constituição de suas famílias, suas trajetórias geográficas, profissionais e educacionais, suas exclusões e inclusões, suas visões de mundo; analisar como esses sujeitos construíram suas identidades pessoais e coletivas, ou seja, suas identidade-eu e identidade-nós.

No tocante ao papel da educação escolar e familiar na constituição da identidade dos pesquisados, constatei naquela pesquisa (p. 35) que

Na escola, como na família, há um conjunto de relações interdependentes. Ela se configura como um espaço de aprendizagem, não apenas dos conteúdos explícitos transmitidos, mas de construção de novas relações sociais. Nesse espaço grupos de amigos são forjados, conceitos e preconceitos são confrontados, ocorrem inclusões e exclusões, forjam-se subjetividades, reconstroem-se identidades coletivas (nós) e individuais (eu).
A perspectiva teórica então utilizada foi a multiculturalista, ancorada em A pesquisa foi ancorada teoricamente em um amplo aparato conceitual em torno do verbete identidade, a saber Nortbert Elias (1994), Munanga (1999), Castells (1999), Hall (2002).
Essas reflexões me levaram a pensar na diversidade étnica, na pluralidade de perspectivas, nas várias lutas identitárias, como dos negros, das mulheres, dos índios, dos LGBts, dentre outros e me percebi questionando se a perspectiva identitária era a mais adequada para a perspectiva de construção de uma sociedade libertária, igualitária, solidária e respeitadora da multiplicidade. Eu precisava de um outro olhar. Esse olhar foi me proporcionado pelas Filosofias da Diferença, possibilitando um deslocamento teórico da perspectiva diferença em relação à identidade, o mesmo, para a perspectiva da diferença em si mesma.
A respeito das filosofias da diferença, De Britto e Gallo (2016, p. 11) dizem:
Nietzsche e a sua crítica à metafísica abre caminho para novas interpretações do pensamento. A partir dele, alguns pensadores/filósofos vêm fazendo um trabalho de interpretação na tentativa de esboçar/elaborar aquilo que se chama de “diferença”, que toma como foco argumentativo a crítica à armadura do pensamento dogmático, da representação e do mesmo.
Embora a temática da subjetividade já estivesse presente em minha pesquisa de mestrado, prevaleceu na mesma perspectiva identitária, com um olhar para a multiplicidade com referência à universalidade, à unicidade, ao mesmo. A perspectiva teórica que estou propenso a adotar, de ora em diante, é uma espécie de acerto de contas com minha trajetória política e teórica. O deslocamento que pretendo realizar, inspirado na perspectiva das filosofias da diferença, sobretudo foucaultiana, vai da identidade aos processos de constituição da subjetividade ou processos de subjetivação.
Por subjetividade, nessa pesquisa, quer se entender as diversas formas de constituição do sujeito, ou seja, os processos ou formas de subjetivação dos ativistas antirracistas no Brasil, oriundos das diversas organizações de luta de resistência ao racismo nas suas múltiplas manifestações, ou mesmo de forma individual.
Essa perspectiva encontramos principalmente Foucault, sobretudo a partir dos anos de 1980, em seus cursos no Colege de France. No seu texto “O governo dos vivos”. Foucault (2009), trabalha a relação entre a manifestação de verdade e o exercício do poder. Essa manifestação da verdade, segundo Foucault, ocorreria na forma de subjetividade.



2- OBJETIVOS
O objetivo geral da pesquisa consiste em investigar e explicitar os processos de subjetivação dos ativistas antirracistas brasileiros e a relação desses processos com a verdade e a educação, fazendo irrupção, falando das descontinuidades históricas, das urgências e emergências.
Os objetivos específicos da pesquisa são:
1)   Inventariar os regimes de verdade que se confrontaram a partis doo final dos anos 1970 e 1980, no Brasil.
2)   Caracterizar os jogos de verdade no Brasil no período pesquisado, a saber, a segunda metade da década de 1970 e durante a década de 1980.
3)   Caracterizar como tem sido tratada a questão racial nas aleturgias educacionais
4)   Analisar a implicação das práticas educativas nos processos de subjetivação dos militantes antirracistas

5)   Analisar as práticas de si dos ativistas antirracistas relevantes para sua constituição enquanto sujeitos.

3- JUSTIFICATIVA               

A relevância social do problema a ser pesquisado reside na sua atualidade. De fato, a relação entre Regimes de Verdade e Processos de Subjetivação, sobretudo aqueles proporcionados pelas práticas educativas marcadas pelos racismos em suas diversas modalidades, tem sido objeto de notícias, de discussões e até de atos de confrontação.
Quanto as contribuições que a pesquisa pode trazer, não seriam tanto no sentido de proporcionar respostas definitivas aos problemas propostos ou ampliaras formulações teóricas a esse respeito. Trata-se de contribuir com problematização, no sentido entendido por Foucault, consistindo em trazer à tona, conforme Foucault, apud Revel (2005, p. 70):

"...o conjunto das práticas discursivas ou não-discursivas que faz qualquer coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política etc.) ”

No caso do presente projeto trata-se de explicitar as práticas educativas de subjetivação, sejam elas levadas a efeito pelas instituições escolares, familiares, movimentos sociais e outras organizações da sociedade, sejam as práticas educativas de si – cuidado de si), por meios das técnicas ou tecnologias de si.

4- REVISÃO TEÓRICA         

Conforme Foucault (2009) a noção de subjetividade está conectada à noção de exercício do poder e da manifestação da verdade. Trata-se de três temas relacionados. Nas palavras do próprio Foucault:
Eis, portanto, os três temas que eu gostaria de sublinhar. Inicialmente a relação entre a manifestação da verdade e o exercício do poder; segundo, a importância e necessidade para o exercício do poder de uma manifestação da verdade que toma a forma, pelo menos em alguns de seus pontos, mas de uma maneira absolutamente indispensável, a forma da subjetividade; enfim, essa manifestação de verdade na forma da subjetividade tem efeitos que vão muito além das relações, digamos, imediatamente utilitárias do conhecimento: a aleturgia, a manifestação da verdade faz muito mais que permitir conhecer.

Em relação ao tema específico da subjetividade, eis o resumo que apresenta Revel (2005, p. 82)
O termo "subjetivação" designa, para Foucault, um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, ou, mais exatamente, de uma subjetividade. Os "modos de subjetivação" ou "processos de subjetivação" do ser humano correspondem, na realidade, a dois tipos de análise: de um lado, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos - o que significa que há somente sujeitos objetivados e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação; de outro lado, a maneira pela qual a relação consigo, por meio de um certo número de técnicas, permite constituir-se como sujeito de sua própria existência.

Assim, indagar pela subjetividade é buscar compreender, num primeiro momento, os processos de objetivação, processos esses que tornam o indivíduo sujeito, melhor dizendo, sujeitado ou sujeito passivo, para ficar dentro da terminologia foucaultiana. Também é buscar compreender como o indivíduo se constituiu enquanto sujeito, no sentido ativo, ou seja, que tecnologias ou técnicas de si este individuo utilizou em si mesmo para constituir-se. Nas palavras de Foucault (2010, p. 6), trata-se de “analisar essas formas de subjetivação através das técnicas/tecnologias da relação de si, consigo mesmo, do cuidado de si ou, vamos dizer, através do que se pode chamar, conforme Foucault, de pragmática de si”.

Que relação se pode estabelecer entre processos de subjetivação e educação?

A manifestação da verdade na sua forma de subjetivação utiliza-se de certos meios de poder para poder se tornar efetiva. Uma desses meios é a educação, nas suas mais diversas formas: educação familiar, educação escolar, educação social.
No tocante à educação escolar, Conforme Gallo; Veiga-Neto (2009, p. 19), eis a visão de Foucault:

“Para Foucault ela funciona como um conjunto de dispositivos e estratégias capazes de subjetivar, ou seja, construir/fabricar os sujeitos. Para a pedagogia, a educação funciona para “transformar” algo que estava desde sempre aí, isto é, dar o “acabamento” em algo que já existia como potência e que estava à espera de ser realizado. ” (GALLO; VEIGA-NETO, 2006, p. 19).

Em relação à verdade e regimes de verdade, Foucault apud Gore (2002, p.10) diz:
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discursos que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais um deles é sancionado; as técnicas e procedimento valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro.

Essa política geral de verdade se apresenta num conjunto de manifestações, denominadas por Foucault de aleturgias. E é dessa forma que o regime de verdade constrange a todos a aceitar a verdade.
As práticas discursivas e não discursivas racistas são plenamente legitimadas pelo regime de verdade hegemônico. Hegêmonico porque nos jogos de verdade, incluindo-se aí as relações de saber e de poder, ele conseguiu exercer o governo.
Olhando essas relações do ponto de vista dos sujeitos envolvidos, pode-se fazer uma leitura das mesmas enquanto relações raciais, o que nos remete à noção de raça. Há então, que se deixar explicitado as seguintes noções: relações de saber, relações de poder, relações raciais, educação, subjetividade.
Quanto aos ativistas antirracistas, quem são eles?
Trata-se de indivíduos, que, vinculados a organizações coletivas ou não, apresentam práticas discursivas e não discursivas de resistência aos regimes de verdade racistas, que lhes impõe uma objetivação (subjetivação passiva); indivíduos que resistem, que se posicionam dentro dos jogos de verdade, com suas próprias verdades; que se utilizam de técnicas/tecnologias de si para se constituírem enquanto sujeitos que não sejam caracterizados pela objetivação.
No Brasil, estes ativistas são oriundos de diversos estratos sociais, identificados como negros, índios, trabalhadores, mulheres, pessoas com deficiência, ciganos, quilombolas, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais (LGBTs), pobres, favelados, fanqueiros, Rappers e assim por diante.
Trata-se de ativistas antirracistas que, em suas práticas, fazem menção explicitas ou não aos temas da raça e do racismo, mas suas práticas, em seus efeitos, podem ser compreendidas como antirracistas.
Sobre a noção de raça, há que se fazer aqui, uma explicitação do sentido da mesma neste projeto de pesquisa. Vamos recorrer a Foucault.
Foucault (1999, p. 87; 73; 95), fala de uma “história da luta das raças”, de uma “história do discurso da luta e da guerra das raças”; de “pureza da raça”. Mas o que se pode compreender por raça, segundo Foucault?
Foucault (1999, p. 150) refere-se à luta de raças (normandos x saxões, por exemplo) antes da emergência do racismo. As condições de possibilidade do racismo teriam ocorrido, segundo Foucault, com o fim dos discursos de luta de raça e com a emergência de uma noção de raças a partir da biologia.
Foucault não define “raça”. O que ele faz é defender a tese da existência de um racismo, mais precisamente no racismo de estado. Como funciona esse racismo?
Para Foucault, o Estado detém o biopoder. Esse estado já não é aquele que promove a morte, sendo o viver uma seção. Promover a morte e permitir a vida, eis o mote do antigo regime. O novo regime é detentor do biopoder: “fazer viver e deixar morrer”. Estado promotor da vida. Mas, um olhar atento às práticas das instituições desse estado, lá nas suas extremidades, bem no nível micro, trata-se de um estado que tem práticas que favorecem a morte. Como seria possível isso? Foucault responde: pelo racismo.
Ao estabelecer formas de controle da população por meio de normas e protocolos de saúde e de outras dimensões da população, utilizando-se dos critérios de normalidade x anormalidade, o estado justifica as mortes pelo racismo: a eliminação dos anormais.

A respeito de biopoder, necropoder e da necropolítica, assim diz Mbembe (2018, p. 71):
Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”.
Assim, me parece que, ao estabelecer quem é normal e quem é anormal; ao focar a prática o necropoder nos anormais, Foucault fornece elementos para pensar uma noção de raça, em sentido biológico, que vai além da classificação da ciência evolucionista do século XIX. Existiria uma raça normal e uma raça anormal. Dentro da raça anormal temos multiplicidades raciais: loucos, mendigos, negros, indígenas, mulheres, gays, lésbicas, transexuais, bissexuais e assim por diante, ciganos, religiões não cristãs, culturas africanas, indígenas, ciganos, Rappers, Fanqueiros, favelados, pobres, miseráveis em geral, idosos, pessoas com deficiência.
Falando especificamente do território escolhido como campo de pesquisa, no caso, ativistas antirracistas brasileiros, há que se explicitar algumas informações históricas sobre a emergência, a partir da segunda metade dos anos de 1970 e durante a década de 1980, de movimentos antirracistas que levantaram as bandeiras da igualdade racial e da valorização dos grupos historicamente marginalizados. Esses grupos são principalmente, em seu início negros e indígenas. Porém, ampliando os conceito e, considerando a noção de racismo conforme compreendida por Foucault, como um conjunto de práticas das organizações do Estado, não no seu núcleo duro de poder, na sua centralidade, mas nas suas extremidades, no nível micro; práticas que, baseadas no dualismo normalidade/anormalidade, em vez de promover a vida de todos, promovem a morte dos anormais, tanto no sentido metafórico do termo, como o preconceito, a discriminação, a segregação, quanto no sentido literal, cominando com a violência brutal, causando lesões corporais e eliminação física. Nessa noção ampliada entram outras categorias no rol dos anormais, além daquelas mencionadas (negros, índios). Entram também ciganos, quilombolas, favelados, mendigos, loucos, pobres, mulheres, LGBTs, Fanqueiros, Rapeiros, religiosos fora do padrão do regime de verdade, como aqueles que praticam o candomblé, a umbanda, o batuque, a pajelança, adeptos de grupos e vivência ou “filosofias”, como os frequentadores de centros espíritas, agnósticos e assim por diante. Essa multiplicidade de sujeitos tem em comum o fato de estarem classificados como outro; outro em ralação ao mesmo, em relação ao uno, em relação ao padrão.
Diante do quadro acima, considerando a existência histórica de regimes de verdade no Brasil, promovendo a vida pelo biopoder, mas praticando o necropoder em relação aos tidos como os anormais, emergiram em vários momentos da história práticas discursivas e não discursivas de resistência ao racismo nas suas mais diversas formas: preconceito, discriminação, segregação, violência e morte.
As práticas discursivas desses ativistas consistiram e consistem sobretudo em no dizer a verdade. E dizer a verdade em relação ao regime de verdade de um biopoder que pratica o necropoder é gritar contra as injustiças; é lutar por políticas justas que promovam a liberdade e igualdade, com riscos, inclusive de perda da vida; dizer a verdade, dessa forma, é praticar a parrisia.
Mas há práticas não discursivas, consistentes em ações de instituições, de pessoas que, utilizando o próprio corpo, por meio de suas vestimentas, seus penteados, suas expressões corporais, suas artes, ocupações de espaços públicos e privatizados, resistem ao racismo em suas diversas modalidades.
O problema a ser pesquisado situa-se no âmbito dos sujeitos. O que se quer saber é: como os ativistas que se engajaram e se engajam na luta antirracista constituem-se enquanto sujeitos? Que tecnologias ou técnicas de si utilizaram e utilizam para preparar-se para essas lutas, a saber, praticar a parrisia, dizem a verdade, gritando contra as injustiças, lutando por uma nova governantabilidade, cuidando de si, preparando-se para cuidar de outros; educando-se; cuidando de si para ocuparem-se de outros para que também cuidem de si, para que se eduquem, se preparem as pequenas e grandes lutas de combate ao racismo.
A relação entre subjetividade e verdade é tratada em Foucault em várias obras.
Na obra História da sexualidade 2, Foucault (1984, p. 10-11), a relação entre jogos de verdade e subjetividade:
Parecia agora que seria preciso empreender um terceiro deslocamento a fim de analisar o que é designado como "o sujeito"; convinha pesquisar quais são as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito. Após o estudo dos jogos de verdade considerados entre si — a partir do exemplo de um certo número de ciências empíricas nos Séculos XVII e XVIII — e posteriormente ao estudo dos jogos de verdade em referência às relações de poder, a partir do exemplo das práticas punitivas, outro trabalho parecia se impor: estudar os jogos de verdade na relação de si para si e a constituição de si mesmo como sujeito, tomando como espaço de referência e campo de investigação aquilo que poderia chamar-se "história do homem de desejo"

Uma das modalidades da relação consigo mesmo muito enfatizada por Foucault é o cuidado de si como ponto outro ponto de partida para o estudo da relação entre verdade e sujeito, segundo Foucault (2006, p. 4).

Gostaria então de tomar como ponto de partida uma noção sobre a qual creio já lhes ter dito algumas palavras no ano passado. Trata -se da noção de "cuidado de si mesmo". Com este termo tento traduzir, bem ou mal, uma noção grega bastante complexa e rica, muito freqüente também, e que perdurou longamente em toda a cultura grega: a de epiméleia heautoú, que os latinos traduziram, com toda aquela insipidez, é claro, tantas vezes denunciada ou pelo menos apontada, por algo assim como cura sui'. Epiméleia heautou é o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc.


Revel (2005, p. 33), sobre o conceito de cuidado de si diz:
A expressão "cuidado de si", que é uma retomada do epimeleia heauton que se encontra, em particular, no Primeiro Alcebíades, de Platão, indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo. O período helenístico e romano sobre o qual se concentra rapidamente o interesse de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica gnôthi seauton, mas a ela não se reduz: o epimeleia heauton corresponde antes a um ideal ético (fazer de sua vida um objeto de tekhnê, uma obra de arte) que a um projeto de conhecimento em sentido estrito.


Com essa atenção para o cuidado de si, Foucault (p. 2006, p. 221), identifica na história, desde o período helenístico até o século XVII, o desenvolvimento de uma cultura de si. Assim diz Foucault:
Bem, acho que tudo isto nos permite finalmente dizer que a partir do período helenístico desenvolveu-se uma cultura de si. Parece-me não ser possível fazer a história da subjetividade, a história das relações entre o sujeito e a verdade, sem inscrevê-la no quadro desta cultura de si que conhecerá em seguida, no cristianismo - o cristianismo primitivo e depois medieval – e mais tarde no Renascimento e no século XVII, uma série de mutações e transformações.

Ante tudo que foi exposto até aqui, vê-se que, de uma preocupação de se instigar os cidadãos para que cuidem de si mesmos, chegou-se a uma cultura de si. Com isso, se pensarmos que o regime de verdade constrange, a todos por meio de seus rituais aletúrgicos, e a educação está cheio desses rituais, podemos indagar se o cuidado de si e a cultura de si, podem se constituir como possibilidades de resistência ao regime de verdade hegemônico, linhas de fuga, como diria Deleuze.

E a educação? Será que os processos educativos, sejam aqueles que ocorrem nas instituições (escolares e não escolares), servem apenas para criar assujeitados, objetivados, esmagados pelo regime de verdade que se sobrepõe? Ou nesses processos haveria brechas para o sujeito, utilizando tecnologias ou técnicas si, oferecer resistência e criar linhas de fuga que fugiriam ao controle do regime?

5- METODOLOGIA                 

A anarqueologia enquanto operador metodológico.

A anarqueologia, combinação feita por Foucault entre as palavras anarquia, e arqueologia, mostra uma preocupação de Foucault (2009) em buscar respostas às indagações sobre o sujeito nas relações de saber e de poder. Enquanto na arqueologia, Foucault queria levantar os saberes e na genealogia, seu foco era apontar as relações de poder, na anarqueologia, embora aquelas perspectivas se mantenham presentes, o acento, o foco, o olhar mais atento é deslocado para os processos de subjetivação.
Gallo (2017, p. 69) resume os princípios teóricos e operativos da anarqueologia como operador metodológico, aqui traduzidos livremente por mim. Estes princípios são os que seguem abaixo.
O primeiro é a imanência: em vez de partir de algo tomado universal, parte-se das práticas.
O segundo consiste em assumir que o poder é operador da verdade.
O terceiro é o do não poder: o começo de toda relação de poder e de qualquer ato de verdade está recusa a um certo poder.
O quarto consiste em assumir que que nenhum poder é plenamente aceitável, que esse poder constrange os sujeitos aos atos de verdade
O quinto refere que em cada época histórica há uma multiplicade der regimes de verdade e que eles se equivalem.
O sexto refere que deve-se assumir que se deve acompanhar os deslocamentos, seguir os fluxos, prestar atenção nas instabilidades
Por fim, o étimo, assumir a necessidade de reconhecer e analisar os processos de subjetivação.
Seguindo esses princípios, o que busco, ao utilizar o operador metodológico arqueológico, é isso: partir das práticas (imanência), focar a multiplicidade; considerar os regimes de verdade; considerar os constrangimentos do poder, acompanhar os deslocamentos, os fluxos e reconhecer e analisar os processos de subjetivação.
Ao utilizar a anarqueologia como operador metodológico em minhas pesquisas pretendo contribuir para lançar novos olhares sobre os movimentos sociais, sobretudo o movimento social negro, território de minhas práticas.
Em relação aos procedimentos, utilizarei ferramentas que Foucault usou no método arqueológico, ou seja, escavarei em busca de arquivos, consistindo em artigos de jornais, documentos, revistas, legislações, discursos, documentos em arquivos públicos.
Também utilizarei procedimentos genealógicos, levantando as relações de poder sobretudo em relação aos regimes de verdade, os jogos de verdade e os processos de subjetivação, principalmente no âmbito educacional.
Além disso, entrevistarei ativistas antirracistas que abrangem o período da segunda metade dos anos de 1970 até a presente data. Os ativistas a serem entrevistados são aqueles que atuaram a partir do movimento social negro, dos movimentos religiosos de matriz africana, ativistas de movimentos sindicais, mas que tiveram e/ou tem uma militância antirracista, ativistas não ligados ao movimento, mas que tiveram e/ou têm uma militância antirracista. Essas entrevistas serão abertas em forma de diálogo e, mediante expressa autorização dos sujeitos entrevistados, gravadas.
Além disso serão utilizadas pesquisas publicadas em livros, periódicos ou em bancos eletrônicos de universidades e organizações que mantenham arquivos de dissertações e teses.
A bibliografia básica a ser utilizada para a compreensão do tema geral, a saber a relação entre subjetividade e verdade, será principalmente as de Foucault, principalmente aquelas que tratam dos processos de subjetivação. Além dessas obras serão utilizadas obras de estudiosos de Foucault que tenham relação direta sobre o tema, como Silvio Gallo, Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-Neto e Nildo Avelino, dentre outros.

Para a compreensão das práticas antirracistas serão utilizadas obras específicas que tratam da temática. Nesse sentido serão utilizadas obras de Achille Mbembe, Djamila Ribeiro, Angela Davis, Franz Fanon, Abdias Nascimento, Stuart Hall, Chimamanda Ngozi Adichie, Lorenzo Kom’boa Ervin, dentre outros.


6- CRONOGRAMA  

            O cronograma da pesquisa será negociado com o orientador. Até esta a data desta publicação foi escolhido o tema, apontadas blibligrafia básica a protololado o projeto na Universidade Estadual de Campinas.
O termo final de conclusão da pesquisa provavelmente será no final do ano de 2022.

7-BIBLIOGRAFIA 


A bibliografia relacionada abaixo é apenas um indicativo inicial. Outras obras poderão ser lidas durante o desenrolar da pesquisa.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. São Paulo : Companhia das Letras. 2014.
Barros, J.B. A identidade dos gestores escolares negros. Rio Claro, SP, Unesp, 2006. (Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/brc/33004137064P2/2006/barros_jb_me_rcla.pdf
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo : Paz e Terra, 1999.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo : Boitempo, 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo : Boitempo, 2018.
DE BRITTO, Maria dos R.; GALLO, Silvio D. Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1994.
ERVIN, Lorenzo Kom’boa. Anarquismo e revolução negra. Tradução Maria Correa dos Santos. Sunguilar, 1993.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador : EDUFBA, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel, Em defesa da sociedade curso no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo : São Paulo : Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do sujeito: Tradução Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009 (ebook).
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros : curso no Collège de France (1982-1983). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2010.
GALLO, Sílvio; SOUZA, Maria Refina de (org). Educação do preconceito: ensaios sobre poder e resistência. 2ª ed. Campinas-SP, Alínea, 2016.
GALLO, Sílvio (org). As diferentes faces do racismo e suas implicações na escola. Campinas, SP. Edições Leitura Crítica; ALB, 2014.
GALLO, Sílvio D. De la anarqueología como operador metodológico. In: CORTÉ, Pulido et all (Coord). Formas y expresiones metodológicas en el último Foucault. Tunja: Editorial UPTC, 2017.
GORE, Jennifer M. Foucault e Educação: Fascinantes desafios. In: Silva, Tomaz Tadeu. O sujeito da educação: estudos Foucaultianos. 5ª ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 1984
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo : n-1 edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução Renata Santini. São Paulo : n-1 edições, 2018.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Petrópolis-RJ : Vozes, 1980.
REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlo Piovesani. - São Carlos : Claraluz, 2005.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte-MG : Leetramento, 2017.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo : Cia das Letras, 2018.
VEIGA-NETO, Alfredo; GALLO, Silvio, Ensaio para uma filosofia da educação. In:

“Foucault pensa a educação” São Paulo: Segmento, 2006.


* José Benedito de Barros, Mestre em Educação pela Unesp/Rio Claro.
Email: bajobento@gmail.com

segunda-feira, 25 de junho de 2018

A subjetividade dos educadores sociais negros


A subjetividade dos educadores sociais negros

 

José Benedito de Barros[*]


Os estudos sobre as relações raciais no Brasil têm se multiplicado nos últimos anos, concomitante à emergência dos movimentos sociais negros e outros movimentos que trabalham o tema da identidade racial e/ou étnica.
Meu intento é estudar as lideranças dos movimentos sociais negros, educadores sociais que têm procurado fazer a diferença. Trata-se de saber como esses educadores constituem a própria subjetividade, enquanto lutam por políticas públicas de igualdade e respeito às diferenças.

Da identidade à subjetividade: um deslocamento

Em minha pesquisa de mestrado (Barros, 2006) procurei mostrar como os gestores escolares negros constroem suas identidades. O pano de fundo daquela pesquisa eram as relações raciais no Brasil com foco na educação escolar. Nessa pesquisa o foco eram aqueles educadores que se deslocaram de sua função de educadores-professores para a função de educadores gestores.
A perspectiva teórica então utilizada foi a multiculturalista, como forma de entender a multiplicidade étnica, compreender as diferenças e fortalecer a identidade negra como forma de resistência ao racismo. Essa resistência era entendida em dois sentidos: negativa e positiva.
No aspecto negativo tratava-se de combater todas as formas de racismo das quais a comunidade negra era vítima. No aspecto positivo tratava-se de lutar por políticas públicas, na forma de ações afirmativas, como as cotas, para estabelecer a igualdade real de oportunidades no campo da economia, da política e da cultura, incluindo-se aí a educação.
A pesquisa foi ancorada teoricamente em um amplo aparato conceitual em torno do verbete igualdade, a saber Nortbert Elias (1994), Munanga (1999), Castells (1999), Hall (2002).
Tratou-se, pois, de analisar a identidade a partir da autoimagem dos próprios sujeitos pesquisados, de suas trajetórias, de suas experiências enquanto negros e enquanto gestores escolares.
Aquele trabalho teve como objetivos inventariar a autoimagem dos pesquisados enquanto negros e enquanto gestores escolares, colhendo dados, a partir de suas falas, a respeito de si mesmos e das instituições ou organizações de que fazem parte, constituição de suas famílias, suas trajetórias geográficas, profissionais e educacionais, suas exclusões e inclusões, suas visões de mundo. A partir desse inventário procurou-se analisar como esses sujeitos construíram suas identidades pessoais e coletivas, ou seja, a identidade-eu e a identidade-nós.
Buscou-se naquele trabalho, principalmente, a compreensão do sentido do conceito de identidade. Segundo Norbert Elias (1994), a identidade de uma pessoa tem duas faces que se inter-relacionam: a identidade-eu e a “identidade-nós”.
A identidade-eu diz respeito à pessoa enquanto singular, focalizando as diferenças, enquanto que a “identidade-nós” caracteriza o indivíduo pertencente a um determinado grupo, primeiramente a família, mas também outros grupos do qual faça parte, focalizando aquilo que é comum.
Quanto ao referencial teórico, foram utilizados, principalmente, os conceitos de identidade, de configuração, de interdependência, de exclusão, de mestiçagem e de sincretismo, de cultura e de gestão.
Segundo Castells (1999, p. 24-27) identidade é aquilo que é “fonte de significado e experiência de um povo”.
Partindo dessa definição este autor apresenta três tipos de identidade: a identidade legitimadora, a identidade de resistência e a identidade de projeto.
Os resultados da pesquisa indicaram que os gestores escolares negros constroem sua identidade individual e coletiva a partir de diversos materiais culturais disponíveis, provenientes de suas trajetórias pessoais, familiares, profissionais e educacionais.
Hoje, olho a pesquisa que fiz com um olhar crítico, pois vislumbro que a perspectiva adotada tinha um endereço certo: o combate à perspectiva colonialista eurocêntrica que figurava como sustentáculo ideológico dominação social e racial no Brasil. Essa perspectiva seria a responsável pela escravização e pelas suas consequenciais, a saber, as várias formas de racismo que o povo negro e segmentos étnicos não hegemônicos sofrem em nosso país. Comecei a pensar se ao fortalecer a identidade negra não estaríamos propensos a inverter o polo dominação e, uma vez que, se nos tornássemos hegemônicos, será que isso significaria o fim das dominações ou abriria a possiblidade de outras dominações?
Essas reflexões me levaram a pensar na diversidade étnica, na pluralidade de perspectivas, nas várias lutas identitárias, como dos negros, das mulheres, dos índios, dos LGBts, dentre outros e me percebi questionando se a perspectiva identitária era a mais adequada para a perspectiva de construção de uma sociedade libertária, igualitária, solidária e respeitadora da multiplicidade. Eu precisava de um outro olhar. Esse olhar foi me proporcionado pelas Filosofias da Diferença, possibilitando um deslocamento teórico da perspectiva diferença em relação à identidade, o mesmo, para a perspectiva da diferença em si mesma.
A respeito das filosofias da diferença, De Britto e Gallo (2016) dizem:
Nietzsche e a sua crítica à metafísica abre caminho para novas interpretações do pensamento. A partir dele, alguns pensadores/filósofos vêm fazendo um trabalho de interpretação na tentativa de esboçar/elaborar aquilo que se chama de “diferença”, que toma como foco argumentativo a crítica à armadura do pensamento dogmático, da representação e do mesmo.
Tendo em vista que minha pesquisa no mestrado foi feita numa perspectiva identitária, da diferença em relação ao mesmo, o objeto de pesquisa que estou elegendo e a perspectiva teórica que estou propenso a adotar, de ora em diante, é uma espécie de acerto de contas com minha trajetória política e teórica. O deslocamento que pretendo realizar, inspirado na perspectiva das filosofias da diferença, sobretudo foucaultiana nos estudos sobre subjetivação, requer o uso de um operador metodológico que Foulcault denominou da anarqueologia.
Pois bem, pretendo utilizar a anarqueologia como operador metodológico para pesquisar os educadores sociais negros, sobretudo, com o intuito de saber como eles construíram a si mesmos durante suas trajetórias pessoais, profissionais, educacionais e de luta política; a relação dessa construção com os regimes de verdade e os saberes e relações de poder a eles inerentes.

A anarqueologia enquanto operador metodológico.

A anarqueologia, combinação em tom de brincadeira entre as palavras, anarquia, e genealogia, mostra uma preocupação de Foucault (2009) em buscar respostas às indagações sobre o sujeito nas relações de saber e de poder. Enquanto na arqueologia, Foucault queria levantar os saberes e na genealogia, seu foco era apontar as relações de poder, na anarqueologia, embora aquelas perspectivas se mantenham presentes, mas ao acento, o foco, o olhar mais atento é nos processos de subjetivação.
Gallo (2017) assim resume a anarqueologia como operador metodológico:

De manera más sistemática (y esquemática), podemos presentar como sigue los principios teóricos y operativos de la anarqueología como operador metodológico:
a. Asunción de la inmanencia: no partir de algo que sea tomado como universal (un concepto, una verdad, una certeza, uma esencia…), sino siempre de las prácticas, para ahí encontrar los indicios que permitan trazar la ruta investigativa.
b. Asunción del poder como operador de la verdad.
c. Asunción que el no-poder, la recusa a un cierto poder está  en el comienzo de toda relación de saber, de cualquier acto de verdad.
d. Asunción que ningún poder es plenamente aceptable y que es eso que constriñe a los sujetos a los actos de verdad.
e. Asunción que hay en cada momento histórico uma multiplicidad de regímenes de verdad y que hay uma equivalencia entre ellos; eso implica la necesidad de estudiar y analizar cada uno de los regímenes de verdad, de manera que pueda comprender su participación en los procesos de constitución de los sujetos.
f. Asunción de la necesidad de acompañar los desplazamientos, seguir los flujos, poner atención en las inestabilidades.
g. Asunción de la necesidad de reconocer y analizar los procesos de subjetivación.

Assim, o que busco, ao utilizar o operador metodológico arqueológico, é isso: partir das práticas (imanência), focar a multiplicidade; considerar os regimes de verdade; acompanhar os deslocamentos, os fluxos e reconhecer e analizar os processos de subjetivação.
Ao utilizar a anarqueologia como operador metodológico em minhas pesquisas pretendo contribuir para lançar novos olhares sobre os movimentos sociais, sobretudo o movimento social negro, território de minhas práticas.




Referências Bibliográficas

Barros, J.B. A identidade dos gestores escolares negros. Rio Claro, SP, Unesp, 2006. (Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/brc/33004137064P2/2006/barros_jb_me_rcla.pdf
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo : Paz e Terra, 1999.
DE BRITTO, Maria dos R.; GALLO, Silvio D. Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1994.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009 (ebook).
GALLO, Sílvio D. De la anarqueología como operador metodológico. In: CORTÉ, Pulido et all (Coord). Formas y expresiones metodológicas en el último Foucault. Tunja: Editorial UPTC, 2017.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.



[*] Mestre em Educação pela Unesp, Rio Claro-SP.