quarta-feira, 20 de junho de 2018

Relações raciais, práticas educativas e subjetividade


Jose Benedito de Barros
(Texto em construção)

Compreender as relações raciais, sobretudo como elas ocorrem no Brasil na contemporaneidade, tem sido um desejo que cultivo nos últimos 30 anos, período de minha militância social e política.

Nessa militância, a questão das relações raciais foi priorizada, sobretudo na sua dimensão educacional, seja de forma não sistematizada, em reuniões, palestras, entrevistas, rodas de conversa, atividades culturais, exposições artísticas, dentre outras, seja de forma sistematizada, em espaços do próprio movimento ou em agências especializadas, como escola públicas ou privadas.
Nessa militância diversos saberes foram utilizados: saberes que são fruto da experiência de vida pessoal, dos embates cotidianos da luta; saberes transmitidos pelos mais velhos, como minha avós, meu pai, minha mãe, meus tipos e tias; saberes escolares; saberes adquiridos das leituras de gibis, de romances, de pensadores da filosofia: Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Feuerbach, Hegel, um pouco de Nietzsche, Enrique Dussel (Filosofia da Libertação), de Leonardo Boff (Teologia da Libertação), de Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido), de Abdias nascimento (Quilombismo), de Malcoln X, Clovis Moura, Munanga, Joel Rufino dos Santos, Steve Biko.
Abdias do Nascimento
Destaco ainda os saberes proporcionados pelo movimento de negritude vindo da África, do pan-africanismo, consciência negra, descolonização; de movimentos do América do Norte como os Black Panters e Black Power.
O resultado foi um tipo de militância que via na identidade a possibilitasse a liberação do negro e de todos os oprimidos: identidade negra, identidade indígena, identidade latino-americana, identidade da mulher e depois identidades LGBTs...

Identidade: quem sou? Quem somos? Quem queremos ser?

Tenho militado e pesquisado as relações raciais pelo viés identitário, com um projeto de fundo que é o fortalecimento das diversas identidades étnicas presentes em nosso território como estratégia de resistência à dominação social e política e de construção de projetos emancipatórios. Essa militância me fez mergulhar no rio da história e da cultura em busca da origem (genealogia), em busca de um fundamento, em busca de outros saberes, em busca de minha identidade.

Família mestiça
Stuart Hall
Pelo lado materno: Bisavô italiano e Bisavó africana. Pelo lado paterno, avô descendente de negros africanos e avó descendente de indígenas e portugueses. Uma pesquisa mais aprofundada revelou antepassados de diversas origens: africanos (África do Norte e África Subsaariana), indígenas, europeus (britânicos, portugueses, espanhóis, italianos, gregos), asiáticos (oriente médio) e Oceânios (aborígenes).
Minha experiência familiar não é só de mestiçagem genética; os saberes, a cultura que recebi também é mestiça.

Em minha dissertação de mestrado, finalizado em 2006, denominado “A identidade dos gestores escolares negros” abordei a questão, procurando compreender como os gestores negros pesquisados construíram e constroem suas identidades. Identidades essas, compreendidas, na sua dimensão individual e coletiva (ELIAS); nas espécies legitimação, resistência e projeto (CASTELLS); identidades mestiças (MUNANGA; SERRA) e identidade cultural (HALL; WOODWARD).
Pois bem, o fortalecimento das identidades, sobretudo das subjugadas, foi e tem sido importante para a conquista de políticas públicas de inclusão e de igualdade. Com o passar dos anos, entretanto, venho percebendo, que as práticas discursivas e ações dos movimentos sociais de que participei e participo, ainda que com menos intensidade nos dias atuais (movimento social negro, movimentos de luta pela terra, de luta por moradia, de melhoria por condições de vida...) e outros que apoio e/ou sou solidário parecem não dar conta da realidade. Esta parece ser bem mais complexa e sua compreensão parece estar escapando de nosso campo de percepção. Suspeito que o fortalecimento das identidades, ressalvadas as conquistas de direitos, que são fato, tenha e esteja legitimando ainda a visão de que há uma referência maior – o uno, a totalidade, contrastando com as identidades, denominadas de “minorias”, vistas como diferenças em relação à totalidade, ao uno, inferiorizadas a ela. Esta suspeita me levou a buscar referenciais que pudessem indicar novas entradas e novas saídas, novos olhares, outras possibilidades de compreensão da realidade. Assim, me aproximei das Filosofias das diferenças.

Diferenças, singularidades e multiplicidade.

Ao estudar o pensamento dos filósofos franceses da diferença, leitores de Nietzche, eu consegui vislumbrar algumas ferramentas para repensar as relações raciais e iniciar uma (auto)crítica das análises da questão racial pelo viés da identidade.


Diferenças
A diferença, no pensamento ocidental, tem sido tratada, como desvio em relação aquilo que é o padrão, da norma. Por isso, a diferença é menos, da ordem do múltiplo; o mais é o uno.
Parmênides: ”ser é não pode não ser; “. Heráclito: “Não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”.
Duas formas de pensar a complexidade no pensamento ocidental, a partir do Século V a.C.: Parmênides foca o aspecto estático, imutável; Heráclito, o aspecto dinâmico, o movimento constante.
Duas posturas, duas formas de pensar. Daí o embate: estática ou movimento? Corpo ou alma (mente); Mundo intelectivo ou mundo sensível; doxa (opinião) ou episteme (ciência).
Platão sintetiza: doxa e episteme são duas faces da mesma moeda; são duas dimensões do mundo. Pera aí: mas a doxa está sob a episteme. A doxa está no domínio do sensível, das coisas que fluem, que mudam, que, perecem, do mundo do múltiplo, da imperfeição, do sensível, do corpo. Já a espisteme está no domínio do intelectível, das coisas que são, que não fluem, do imutável, do infinito, da perfeição, da alma intelectível, do uno.
Hierarquia: o uno está acima do múltiplo; a alma, do corpo; o sensível está subordinado ao intelectível. Pois o múltiplo consiste em cópias imperfeitas das ideias, do verdadeiro, da beleza, do bem.
Pouco mais de um milênio depois, Decartes rebatiza o idealismo platônico, concentrando o domínio do intelectível no sujeito pensante: cogito, ergo sum; primado do pensamento sobre a coisa; da ideia sobre o real. Esse dualismo é reestruturado com Hegel.
O idealismo hegeliano enfatiza a dialética platônica e cartesiana. Nele, afirmação tem como contraposição a negação. E aí, Hegel arrisca uma nova síntese: a negação da negação é a nova realidade, num movimento incessante, mas sempre em espiral, elevando-se cada vez mais. Isso se dá no plano do pensamento. Este pensamento dialético cria a realidade, cria a história.
Marx questiona o esquema hegeliano, invertendo-o: a realidade cria pensamento. Essa inversão de polo, colocando a imanência como determinador da transcendência, mantém o dualismo clássico.
Seria possível romper com esse pensamento hierárquico e dualista, do qual somos herdeiros
Pois bem, penso que as filosofias da diferença podem contribuir nessa tarefa.

Filosofias da Diferença

Os filósofos que problematizam as diferenças, notadamente, interpretes do pensamento antimetafísico de Nietezche, podem contribuir nesse sentido. São diversos os filósofos que se incluem nessa categoria. Aqui vamos nos ater aos franceses Foucault, Deleuze e Guatarri. Esses vêem as diferenças em si mesmas, não em comparação à identidade, ao mesmo, mas as diferenças nelas mesmas, na sua imanência, nas suas multiplicidades, horizontalidades, no chão da vida.

Problematizar as relações raciais no Brasil a partir das filosofias da diferença. Problematizar a educação como tema transversão dessas relações.

Às vezes nos perguntamos: como foi possível tantos séculos de colonização e escravização no Brasil? Como foi possível manter indígenas, africanos e a massa pobre sob jugo, sob obediência? 
Como é possível manter a dominação hoje? Como se dão as relações raciais no Brasil? Como essas relações implicam na educação ou seja nos processos de subjetivação? Quais regimes de verdade se fazem presentes nos processos de subjetivação? Quais as tecnologias de si são agenciadas para a resistência às formas de subjetivação?
Em outros termos: Como ocorre o processo de subjetivação na educação olhado na perspectiva das relações raciais? Que saberes são articulados, que relações de poder são constituídas, que subjetividades são forjadas.
Esse tipo de pesquisa educacional é possível a partir do uso de um operador metodológico foucaultiano denominado "anarqueologia".

Anarqueologia



(Continua)

Bibliografia

BARROS, J.B. A identidade dos gestores escolares negros. Rio Claro, SP, Unesp, 2006 (Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/brc/33004137064P2/2006/barros_jb_me_rcla.pdf
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo : Paz e Terra, 1999.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1994a.
______________. O processo civilizador (I): uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994b.
FORTUNA, Maria L. A. Gestão escolar e subjetividade. São Paulo: Xamã; Niterói: Intertexto, 2000.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira, SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

NASCIMENTO, Abdias do (2002). O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA.
__ . (1982[1968]). O negro revoltado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [1ª ed. Rio de Janeiro: GRD].
__ . (1966). Carta aberta a Dacar. Tempo brasileiro, v. 4, n. 9/10, 2. Trim, 1966. [Diário do Congresso Nacional, suplemento, 20 abr., p. 15-17, lida na Câmara dos Deputados pelo então deputado Hamilton Nogueira.] In: Nascimento, Abdias do. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA, 2002.
__. O quilombismo. Petrópolis, Editora Vozes, 1980.
SERRA, Carlos. Imputação causal em Moçambique e desafios para a gestão da educação e do ensino. In: FERREIRA, Naura Syria Carapeto, AGUIAR, Márcia Ângela da S. (Org.) Gestão da Educação. São Paulo: Cortez, 2000. p. 78-87.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 3ª ed.Petrópolis, Vozes, 2000.


José Benedito de Barros.
Mestre em Educação, Especialista em Direito Processual Civil, Licenciado em Filosofia e Bacharel em Direito.

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