segunda-feira, 25 de junho de 2018

A subjetividade dos educadores sociais negros


A subjetividade dos educadores sociais negros

 

José Benedito de Barros[*]


Os estudos sobre as relações raciais no Brasil têm se multiplicado nos últimos anos, concomitante à emergência dos movimentos sociais negros e outros movimentos que trabalham o tema da identidade racial e/ou étnica.
Meu intento é estudar as lideranças dos movimentos sociais negros, educadores sociais que têm procurado fazer a diferença. Trata-se de saber como esses educadores constituem a própria subjetividade, enquanto lutam por políticas públicas de igualdade e respeito às diferenças.

Da identidade à subjetividade: um deslocamento

Em minha pesquisa de mestrado (Barros, 2006) procurei mostrar como os gestores escolares negros constroem suas identidades. O pano de fundo daquela pesquisa eram as relações raciais no Brasil com foco na educação escolar. Nessa pesquisa o foco eram aqueles educadores que se deslocaram de sua função de educadores-professores para a função de educadores gestores.
A perspectiva teórica então utilizada foi a multiculturalista, como forma de entender a multiplicidade étnica, compreender as diferenças e fortalecer a identidade negra como forma de resistência ao racismo. Essa resistência era entendida em dois sentidos: negativa e positiva.
No aspecto negativo tratava-se de combater todas as formas de racismo das quais a comunidade negra era vítima. No aspecto positivo tratava-se de lutar por políticas públicas, na forma de ações afirmativas, como as cotas, para estabelecer a igualdade real de oportunidades no campo da economia, da política e da cultura, incluindo-se aí a educação.
A pesquisa foi ancorada teoricamente em um amplo aparato conceitual em torno do verbete igualdade, a saber Nortbert Elias (1994), Munanga (1999), Castells (1999), Hall (2002).
Tratou-se, pois, de analisar a identidade a partir da autoimagem dos próprios sujeitos pesquisados, de suas trajetórias, de suas experiências enquanto negros e enquanto gestores escolares.
Aquele trabalho teve como objetivos inventariar a autoimagem dos pesquisados enquanto negros e enquanto gestores escolares, colhendo dados, a partir de suas falas, a respeito de si mesmos e das instituições ou organizações de que fazem parte, constituição de suas famílias, suas trajetórias geográficas, profissionais e educacionais, suas exclusões e inclusões, suas visões de mundo. A partir desse inventário procurou-se analisar como esses sujeitos construíram suas identidades pessoais e coletivas, ou seja, a identidade-eu e a identidade-nós.
Buscou-se naquele trabalho, principalmente, a compreensão do sentido do conceito de identidade. Segundo Norbert Elias (1994), a identidade de uma pessoa tem duas faces que se inter-relacionam: a identidade-eu e a “identidade-nós”.
A identidade-eu diz respeito à pessoa enquanto singular, focalizando as diferenças, enquanto que a “identidade-nós” caracteriza o indivíduo pertencente a um determinado grupo, primeiramente a família, mas também outros grupos do qual faça parte, focalizando aquilo que é comum.
Quanto ao referencial teórico, foram utilizados, principalmente, os conceitos de identidade, de configuração, de interdependência, de exclusão, de mestiçagem e de sincretismo, de cultura e de gestão.
Segundo Castells (1999, p. 24-27) identidade é aquilo que é “fonte de significado e experiência de um povo”.
Partindo dessa definição este autor apresenta três tipos de identidade: a identidade legitimadora, a identidade de resistência e a identidade de projeto.
Os resultados da pesquisa indicaram que os gestores escolares negros constroem sua identidade individual e coletiva a partir de diversos materiais culturais disponíveis, provenientes de suas trajetórias pessoais, familiares, profissionais e educacionais.
Hoje, olho a pesquisa que fiz com um olhar crítico, pois vislumbro que a perspectiva adotada tinha um endereço certo: o combate à perspectiva colonialista eurocêntrica que figurava como sustentáculo ideológico dominação social e racial no Brasil. Essa perspectiva seria a responsável pela escravização e pelas suas consequenciais, a saber, as várias formas de racismo que o povo negro e segmentos étnicos não hegemônicos sofrem em nosso país. Comecei a pensar se ao fortalecer a identidade negra não estaríamos propensos a inverter o polo dominação e, uma vez que, se nos tornássemos hegemônicos, será que isso significaria o fim das dominações ou abriria a possiblidade de outras dominações?
Essas reflexões me levaram a pensar na diversidade étnica, na pluralidade de perspectivas, nas várias lutas identitárias, como dos negros, das mulheres, dos índios, dos LGBts, dentre outros e me percebi questionando se a perspectiva identitária era a mais adequada para a perspectiva de construção de uma sociedade libertária, igualitária, solidária e respeitadora da multiplicidade. Eu precisava de um outro olhar. Esse olhar foi me proporcionado pelas Filosofias da Diferença, possibilitando um deslocamento teórico da perspectiva diferença em relação à identidade, o mesmo, para a perspectiva da diferença em si mesma.
A respeito das filosofias da diferença, De Britto e Gallo (2016) dizem:
Nietzsche e a sua crítica à metafísica abre caminho para novas interpretações do pensamento. A partir dele, alguns pensadores/filósofos vêm fazendo um trabalho de interpretação na tentativa de esboçar/elaborar aquilo que se chama de “diferença”, que toma como foco argumentativo a crítica à armadura do pensamento dogmático, da representação e do mesmo.
Tendo em vista que minha pesquisa no mestrado foi feita numa perspectiva identitária, da diferença em relação ao mesmo, o objeto de pesquisa que estou elegendo e a perspectiva teórica que estou propenso a adotar, de ora em diante, é uma espécie de acerto de contas com minha trajetória política e teórica. O deslocamento que pretendo realizar, inspirado na perspectiva das filosofias da diferença, sobretudo foucaultiana nos estudos sobre subjetivação, requer o uso de um operador metodológico que Foulcault denominou da anarqueologia.
Pois bem, pretendo utilizar a anarqueologia como operador metodológico para pesquisar os educadores sociais negros, sobretudo, com o intuito de saber como eles construíram a si mesmos durante suas trajetórias pessoais, profissionais, educacionais e de luta política; a relação dessa construção com os regimes de verdade e os saberes e relações de poder a eles inerentes.

A anarqueologia enquanto operador metodológico.

A anarqueologia, combinação em tom de brincadeira entre as palavras, anarquia, e genealogia, mostra uma preocupação de Foucault (2009) em buscar respostas às indagações sobre o sujeito nas relações de saber e de poder. Enquanto na arqueologia, Foucault queria levantar os saberes e na genealogia, seu foco era apontar as relações de poder, na anarqueologia, embora aquelas perspectivas se mantenham presentes, mas ao acento, o foco, o olhar mais atento é nos processos de subjetivação.
Gallo (2017) assim resume a anarqueologia como operador metodológico:

De manera más sistemática (y esquemática), podemos presentar como sigue los principios teóricos y operativos de la anarqueología como operador metodológico:
a. Asunción de la inmanencia: no partir de algo que sea tomado como universal (un concepto, una verdad, una certeza, uma esencia…), sino siempre de las prácticas, para ahí encontrar los indicios que permitan trazar la ruta investigativa.
b. Asunción del poder como operador de la verdad.
c. Asunción que el no-poder, la recusa a un cierto poder está  en el comienzo de toda relación de saber, de cualquier acto de verdad.
d. Asunción que ningún poder es plenamente aceptable y que es eso que constriñe a los sujetos a los actos de verdad.
e. Asunción que hay en cada momento histórico uma multiplicidad de regímenes de verdad y que hay uma equivalencia entre ellos; eso implica la necesidad de estudiar y analizar cada uno de los regímenes de verdad, de manera que pueda comprender su participación en los procesos de constitución de los sujetos.
f. Asunción de la necesidad de acompañar los desplazamientos, seguir los flujos, poner atención en las inestabilidades.
g. Asunción de la necesidad de reconocer y analizar los procesos de subjetivación.

Assim, o que busco, ao utilizar o operador metodológico arqueológico, é isso: partir das práticas (imanência), focar a multiplicidade; considerar os regimes de verdade; acompanhar os deslocamentos, os fluxos e reconhecer e analizar os processos de subjetivação.
Ao utilizar a anarqueologia como operador metodológico em minhas pesquisas pretendo contribuir para lançar novos olhares sobre os movimentos sociais, sobretudo o movimento social negro, território de minhas práticas.




Referências Bibliográficas

Barros, J.B. A identidade dos gestores escolares negros. Rio Claro, SP, Unesp, 2006. (Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/brc/33004137064P2/2006/barros_jb_me_rcla.pdf
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo : Paz e Terra, 1999.
DE BRITTO, Maria dos R.; GALLO, Silvio D. Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1994.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009 (ebook).
GALLO, Sílvio D. De la anarqueología como operador metodológico. In: CORTÉ, Pulido et all (Coord). Formas y expresiones metodológicas en el último Foucault. Tunja: Editorial UPTC, 2017.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.



[*] Mestre em Educação pela Unesp, Rio Claro-SP.

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