A subjetividade dos educadores
sociais negros
José Benedito de Barros[*]
Os estudos sobre as
relações raciais no Brasil têm se multiplicado nos últimos anos, concomitante à
emergência dos movimentos sociais negros e outros movimentos que trabalham o
tema da identidade racial e/ou étnica.
Meu intento é estudar
as lideranças dos movimentos sociais negros, educadores sociais que têm
procurado fazer a diferença. Trata-se de saber como esses educadores constituem
a própria subjetividade, enquanto lutam por políticas públicas de igualdade e
respeito às diferenças.
Da
identidade à subjetividade: um deslocamento
Em minha pesquisa de mestrado (Barros, 2006)
procurei mostrar como os gestores escolares negros constroem suas identidades.
O pano de fundo daquela pesquisa eram as relações raciais no Brasil com foco na
educação escolar. Nessa pesquisa o foco eram aqueles educadores que se
deslocaram de sua função de educadores-professores para a função de educadores
gestores.
A perspectiva teórica então utilizada foi a multiculturalista,
como forma de entender a multiplicidade étnica, compreender as diferenças e
fortalecer a identidade negra como forma de resistência ao racismo. Essa
resistência era entendida em dois sentidos: negativa e positiva.
No aspecto negativo tratava-se de combater
todas as formas de racismo das quais a comunidade negra era vítima. No aspecto
positivo tratava-se de lutar por políticas públicas, na forma de ações
afirmativas, como as cotas, para estabelecer a igualdade real de oportunidades
no campo da economia, da política e da cultura, incluindo-se aí a educação.
A pesquisa foi ancorada teoricamente em um
amplo aparato conceitual em torno do verbete igualdade, a saber Nortbert Elias
(1994), Munanga (1999), Castells (1999), Hall (2002).
Tratou-se, pois,
de analisar a identidade a partir da autoimagem dos próprios sujeitos
pesquisados, de suas trajetórias, de suas experiências enquanto negros e
enquanto gestores escolares.
Aquele trabalho teve como objetivos inventariar
a autoimagem dos pesquisados enquanto negros e enquanto gestores escolares,
colhendo dados, a partir de suas falas, a respeito de si mesmos e das
instituições ou organizações de que fazem parte, constituição de suas famílias,
suas trajetórias geográficas, profissionais e educacionais, suas exclusões e
inclusões, suas visões de mundo. A partir desse inventário procurou-se analisar
como esses sujeitos construíram suas identidades pessoais e coletivas, ou seja,
a identidade-eu e a identidade-nós.
Buscou-se naquele trabalho, principalmente, a
compreensão do sentido do conceito de identidade. Segundo Norbert Elias (1994),
a identidade de uma pessoa tem duas faces que se inter-relacionam: a
identidade-eu e a “identidade-nós”.
A identidade-eu diz respeito à pessoa enquanto
singular, focalizando as diferenças, enquanto que a “identidade-nós”
caracteriza o indivíduo pertencente a um determinado grupo, primeiramente a
família, mas também outros grupos do qual faça parte, focalizando aquilo que é
comum.
Quanto ao referencial teórico, foram
utilizados, principalmente, os conceitos de identidade, de configuração, de
interdependência, de exclusão, de mestiçagem e de sincretismo, de cultura e de
gestão.
Segundo Castells (1999, p. 24-27) identidade é
aquilo que é “fonte de significado e experiência de um povo”.
Partindo dessa definição este autor apresenta
três tipos de identidade: a identidade legitimadora, a identidade de
resistência e a identidade de projeto.
Os
resultados da pesquisa indicaram que os gestores escolares negros constroem sua
identidade individual e coletiva a partir de diversos materiais culturais
disponíveis, provenientes de suas trajetórias pessoais, familiares,
profissionais e educacionais.
Hoje,
olho a pesquisa que fiz com um olhar crítico, pois vislumbro que a perspectiva
adotada tinha um endereço certo: o combate à perspectiva colonialista
eurocêntrica que figurava como sustentáculo ideológico dominação social e racial
no Brasil. Essa perspectiva seria a responsável pela escravização e pelas suas
consequenciais, a saber, as várias formas de racismo que o povo negro e segmentos
étnicos não hegemônicos sofrem em nosso país. Comecei a pensar se ao fortalecer
a identidade negra não estaríamos propensos a inverter o polo dominação e, uma
vez que, se nos tornássemos hegemônicos, será que isso significaria o fim das
dominações ou abriria a possiblidade de outras dominações?
Essas
reflexões me levaram a pensar na diversidade étnica, na pluralidade de
perspectivas, nas várias lutas identitárias, como dos negros, das mulheres, dos
índios, dos LGBts, dentre outros e me percebi questionando se a perspectiva
identitária era a mais adequada para a perspectiva de construção de uma sociedade
libertária, igualitária, solidária e respeitadora da multiplicidade. Eu precisava
de um outro olhar. Esse olhar foi me proporcionado pelas Filosofias da
Diferença, possibilitando um deslocamento teórico da perspectiva diferença em
relação à identidade, o mesmo, para a perspectiva da diferença em si mesma.
A
respeito das filosofias da diferença, De Britto e Gallo (2016) dizem:
Nietzsche e a sua crítica à metafísica abre
caminho para novas interpretações do pensamento. A partir dele, alguns pensadores/filósofos
vêm fazendo um trabalho de interpretação na tentativa de esboçar/elaborar
aquilo que se chama de “diferença”, que toma como foco argumentativo a crítica
à armadura do pensamento dogmático, da representação e do mesmo.
Tendo
em vista que minha pesquisa no mestrado foi feita numa perspectiva identitária,
da diferença em relação ao mesmo, o objeto de pesquisa que estou elegendo e a
perspectiva teórica que estou propenso a adotar, de ora em diante, é uma
espécie de acerto de contas com minha trajetória política e teórica. O
deslocamento que pretendo realizar, inspirado na perspectiva das filosofias da
diferença, sobretudo foucaultiana nos estudos sobre subjetivação, requer o uso
de um operador metodológico que Foulcault denominou da anarqueologia.
Pois
bem, pretendo utilizar a anarqueologia como operador metodológico para
pesquisar os educadores sociais negros, sobretudo, com o intuito de saber como eles
construíram a si mesmos durante suas trajetórias pessoais, profissionais,
educacionais e de luta política; a relação dessa construção com os regimes de
verdade e os saberes e relações de poder a eles inerentes.
A
anarqueologia enquanto operador metodológico.
A anarqueologia, combinação em tom de
brincadeira entre as palavras, anarquia, e genealogia, mostra uma preocupação
de Foucault (2009) em buscar respostas às indagações sobre o sujeito nas
relações de saber e de poder. Enquanto na arqueologia, Foucault queria levantar
os saberes e na genealogia, seu foco era apontar as relações de poder, na
anarqueologia, embora aquelas perspectivas se mantenham presentes, mas ao acento,
o foco, o olhar mais atento é nos processos de subjetivação.
Gallo (2017) assim resume a anarqueologia como
operador metodológico:
De manera más
sistemática (y esquemática), podemos presentar como sigue los principios
teóricos y operativos de la anarqueología como operador metodológico:
a. Asunción de
la inmanencia: no partir de algo que sea tomado como universal (un concepto,
una verdad, una certeza, uma esencia…), sino siempre de las prácticas, para ahí
encontrar los indicios que permitan trazar la ruta investigativa.
b. Asunción del
poder como operador de la verdad.
c. Asunción que
el no-poder, la recusa a un cierto poder está
en el comienzo de toda relación de saber, de cualquier acto de verdad.
d. Asunción que
ningún poder es plenamente aceptable y que es eso que constriñe a los sujetos a
los actos de verdad.
e. Asunción que
hay en cada momento histórico uma multiplicidad de regímenes de verdad y que
hay uma equivalencia entre ellos; eso implica la necesidad de estudiar y
analizar cada uno de los regímenes de verdad, de manera que pueda comprender su
participación en los procesos de constitución de los sujetos.
f. Asunción de
la necesidad de acompañar los desplazamientos, seguir los flujos, poner
atención en las inestabilidades.
g. Asunción de
la necesidad de reconocer y analizar los procesos de subjetivación.
Assim, o que busco, ao utilizar o operador
metodológico arqueológico, é isso: partir das práticas (imanência), focar a
multiplicidade; considerar os regimes de verdade; acompanhar os deslocamentos,
os fluxos e reconhecer e analizar os processos de subjetivação.
Ao utilizar a anarqueologia como operador
metodológico em minhas pesquisas pretendo contribuir para lançar novos olhares
sobre os movimentos sociais, sobretudo o movimento social negro, território de
minhas práticas.
Referências
Bibliográficas
Barros, J.B. A
identidade dos gestores escolares negros. Rio Claro, SP, Unesp, 2006.
(Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/brc/33004137064P2/2006/barros_jb_me_rcla.pdf
CASTELLS, Manuel. O
poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo : Paz e
Terra, 1999.
DE BRITTO, Maria dos R.; GALLO, Silvio D. Filosofias da diferença e educação. São
Paulo: Editora Livraria da Física, 2016
ELIAS, Norbert. A
sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar,
Ed. 1994.
FOUCAULT, M. Do
governo dos vivos. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura
Social, 2009 (ebook).
GALLO, Sílvio D. De la anarqueología como operador metodológico.
In: CORTÉ, Pulido et all (Coord). Formas y expresiones metodológicas en el
último Foucault. Tunja: Editorial UPTC, 2017.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus
identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.